A parte mais difícil dessa viagem: Inventar uma nova versão de mim mesmo.
24 meses depois de deixar minha posição de executivo de empresa famosa, abraço meu processo de transformação.
Eu ainda estava na empresa quando soube da notícia da saída de uma importante diretora. Muito curioso, marquei um café pra entender como uma pessoa tão bem sucedida pediu as contas pra ir pra lugar nenhum.
Foi nesse dia em um cantinho de Pinheiros que Fernanda me disse a seguinte frase: Você só vai conseguir realizar esse seu sonho, quando acreditar que é merecedor dele.
Na hora a frase passou como se fosse um post aleatório de um coach rolando pela minha timeline. Não dei muita bola. Mas ao longo dos meses eu percebi que de fato os meus 30 anos de carreira implantaram na minha cabeça a ideia de que eu não era merecedor de tal benesse. No caso, uma volta ao mundo a bordo de um barco a vela que eu teria que construir.
Desse ponto em diante mergulhei numa luta interna onde a única coisa aparentemente aceitável, seria trabalhar, trabalhar e mais trabalhar até morrer.

Com isso em mente comecei a tentar decodificar esse mecanismo. Comecei a reparar como a nossa cultura é impregnada de comandos que preterem aqueles que preferem viver ao invés de performar. (performar mesmo, em bom farialimer, pra ficar ainda mais ridículo)
Comecei a notar que os dias de trabalho são chamados dias úteis, como se o final de semana fosse inútil. Percebi que o sujeito que não trabalha feito doido e curte a vida é chamado de Bon Vivant de forma pejorativa, como se viver bem fosse algum tipo de contravenção.
O fato é que todos estes elementos culturais acabam construindo um sentimento de culpa em todos nós. Qualquer tipo de sonho ou ideia alternativa é sistematicamente coibida, invalidada pela nossa rotina. Eu senti muita culpa por sonhar diferente.
A ideia de parar de ganhar dinheiro, parar de ter influência, parar de ser reconhecido e parar de ser bajulado, sempre foi algo impensável pra minha velha versão de mim mesmo de dois anos atrás.

Nesse mesmo café com a ex diretora, botei pra fora uma questão que me assombrava enquanto falava das minhas intenções pro futuro: Quanto tempo levará pra eu ser esquecido? Se eu ficar fora do jogo vão me esquecer pra sempre? Dá tempo de eu dar uma volta ao mundo e voltar pro mercado de trabalho? Será que ainda vão me querer?
Pois eu descobri a resposta. Leva um mísero único dia pra te esquecerem completamente.
No dia seguinte em que você não esta mais no comando, você é riscado de todas as listas. Todas aquelas pessoas que te chamavam de “brother” e “irmãozinho”, desintegram. (é assim que os homens brancos que detém o poder chamam uns aos outros pra criar intimidade artificial)
Mas eu compreendo. O ponto é que na verdade você não é esquecido. Você nem sequer foi realmente considerado. O que era considerada era a posição que você ocupava, o orçamento que vc era capaz de mobilizar. É, é frio. É, é feio. Mas só percebo agora.

E é aí que mora o sistema perverso. Mesmo quem tem o privilégio de poder escolher, em geral sucumbi a um ciclo vicioso e insaciável de poder, acumulação e consumismo como único meio de satisfação.
Saber olhar pra o que já conquistou, parar, conseguir entender que já é possível ter mais equilíbrio entre viver e performar, tornou-se realmente muito complicado. Tudo trabalha pra te dissuadir.
Eu entendo também que ter essa opção é sim privilégio. Poder desacelerar o trabalho pra viver melhor, ou optar por ganhar menos pra buscar uma atividade diferente aos 40 ou 50 anos, não é uma opção pra maioria das pessoas, infelizmente. (Apesar de que, eu acredito que sonhar e mudar em alguma medida dá pra todo mundo em alguma escala)
Mas o que mais me intriga é realmente observar que quase todos que poderiam fazer isso facilmente, não o fazem. E é nesse bolo que eu me encontrava.
Ah, Pitchu, mas onde é que eu vou arrumar milhões pra conseguir fazer uma maluquice dessas? Essa é a pergunta que eu tenho ouvido e que com o tempo comecei a entende-la mais como uma justificativa esfarrapada do que uma dúvida em si.
E a minha resposta pra essa pergunta pode ser perturbadora. Ninguém precisa de milhões, precisa sim é saber sonhar e ter uma dose gigantesca de desapego.
Tem que abrir mão de um monte de bobagem que gruda na gente e trocar por algo que você quer mais que tudo nessa vida.
Dinheiro é mensurável, você faz contas, calcula quanto tempo precisa, quanto precisa ganhar, quanto precisa cortar e por aí afora. Ao passo que ter uma paixão na vida, ter um sonho que vira um projeto, é incontrolável. Você não decide que vai sonhar hoje. Porém você pode criar as condições pro sonho surgir. Aí é só aguardar que ele vem, mas quando ele quer.
Eu ouvi muita gente me dizer, puxa vida que legal isso que está fazendo, pena que eu não tenho algo assim pra gostar, ou, pena que eu não goste tanto assim de nada.
Eu fiquei triste ouvindo isso tantas vezes, mas logo ví que essas pessoas não tem culpa. Na minha opinião, o sistema que vivemos amputou delas a capacidade de imaginar outros futuros possíveis. Somos adestrados pra consumir. Fomos reprogramados pra possuir pra ser feliz e não mais sonhar pra ser feliz.
E sobre o desapego, essa mesma reprogramação que amputa sonhos, nos enche de medo. Mesmo quem tem as reservas financeiras suficientes, tem medo de ficar sem dinheiro, mesmo que você prove matematicamente o contrário. Mesmo que seja absolutamente improvável que alguém tão capaz vá subitamente se tornar incapaz a ponto de mergulhar num total descontrole e “passar fome”, como dizem.
Acho que o Bon Vivant, no final das contas, é aquele que se permite sonhar e aquele que domina bem esse medo.
A Minha experiência.
Os 24 meses foram divididos em 12 meses de conflito e negação seguidos por mais 12 meses de reconstrução e revelação.
No primeiro ano, 2023, eu sofri. Era como abandonar um vício. Passei esse ano acreditando que estava fazendo uma tremenda bobagem, que estava jogando no lixo algo muito valioso que construira ao longo de décadas. Neste período eu achava que eu não passava de um vagabundo, um desempregado, um velho, inventando uma história pra me enganar. Eu não poderia ser digno desse sonho.
No segundo ano, 2024, percebi que estava sim jogando algo no lixo, mas era algo nem um pouco valioso. Estava me livrando de uma versão de mim que eu não queria mais de jeito nenhum. Lá nas profundezas da minha intuição, alguma coisa me dizia que esse velho modelo não me serviria mais e que eu tinha que encontrar um novo caminho.
No momento em que eu aceitei, tudo fluiu maravilhosamente. Eu mereço sim esse sonho. Eu não ganhei ele, eu construí ele meticulosamente.
O meu olhar mudou. Eu comecei a escutar, a ver e a sentir todo mundo que jamais me abandonou. Finalmente o vazio deixado pelos bajuladores foi preenchido pelos amigos e pessoas de verdade. Pessoas que não brotaram do nada. Pessoas que na verdade nunca saíram do meu lado. Eu é que não as enxergava mais.
Em 2024 eu construí uma conexão com meus filhos adolescentes que mudou a minha vida e certamente contribuiu com a deles. Eu pude viver de perto dias que não voltarão nunca mais e muito provavelmente eu teria perdido completamente por conta de alguma reunião muito inútil.

Em 2022 eu mal sabia o que faziam os meus filhos o dia todo. Em 2023 eles se assustaram e perguntaram se eu estava desempregado e se estávamos correndo algum risco. Em 2024 eu ouvi deles que eu era incrível, que estavam felizes por me ter por perto e que tinham orgulho de mim. E tudo isso sem colocar nenhum comercial no ar, que era a única coisa que eu achava que era digno de orgulhar alguém até então. Que panaca…

Eu pude também em 2024 estar presente e disponível pra momentos importantes na vida da Leticia esposa (tem a Leticia filha). Ouvi suas preocupações com uma escuta ativa que eu jamais fui capaz de oferecer a ela e nem a ninguém. Até então eu viva num mundo da lua só meu, numa bolha metida a besta, e não ouvia ninguém de verdade, só me preocupava comigo mesmo.

Também nesse ano, foi quando morreu meu pai. (Falo dele no texto anterior. Seuca). Foi a chacoalhada definitiva. Foi a derradeira lição dele pra mim. Como se ele tivesse dado a vida pra nos dar um último recado. Como se ele tivesse repetido com toda a força uma frase que sempre dizia com aquele vozerão de cantor: “Vai com tudo meu filho e para se se preocupar com bobagem”.
No ano passado e até o presente momento, consegui também viver um tempo de qualidade com minha mãe. Consegui reencontrar uma beleza gigantesca nela. Eu tinha esquecido como ela é fantástica e como ela é importante pra mim. A gente costuma esquecer essas coisas e só o tempo e a presença plena e generosa são capazes de nos fazer recordar.

Enfim, a segunda metade dessa transformação me entregou coisas que eu jamais conseguiria ter vivido se ainda estivesse inserido no moedor de gente que é trabalhar, acumular, consumir, ficar doente, tomar remédio, levantar, trabalhar, consumir, ficar estressado, tomar remédio, levantar, trabalhar, consumir e assim sucessivamente.
E veja só. Não sou contra esse remédio . Eu sou contra a usar com a dosagem errada. O trabalho é o que me trouxe até aqui. Foi lindo. Eu amei. Sou grato. Fui feliz. Porém, o equivocado seria ficar só nisso. A vida precisa ser mais que isso.
Definitivamente, ter mais tempo tem me permitido viver coisas muito mais importantes do que ter mais dinheiro. Me reconectou com o que vale mais.
Eu mereço sim o meu sonho.
Já posso embarcar no Boto no dia 9 de Junho.
Aposentadoria?
Tem quem pergunte se eu me aposentei. Eu respondo que sim, porque acho engraçado, mas tecnicamente a resposta pode ser que não. O que eu fiz na prática foi mudar o jeito de trabalhar. Eu decidi que agora trabalho na dose e na qualidade certas.
Eu passei a vida tentando convencer pessoas a fazer coisas que não queriam. Convencendo anunciantes a anunciar num lugar mais caro, convencendo pessoas a trabalharem mais por menos, convencendo sócios a investirem mais, convencendo clientes e colegas de que eu estava certo, convencendo todo mundo que eu era o melhor, o mais inteligente, o mais criativo. E pior de tudo, convencendo a mim mesmo que essa pataquada toda era algo bacana.
Isso me exauriu e agora basta. Agora eu trabalho com quem me quer por perto voluntariamente e com o que eu eu quero e na intensidade que me faz bem.

É fato que essa mudança de postura trouxe como consequência eu ganhar muito menos dinheiro do que antes, o que me obrigou a ajustar incansavelmente minhas contas e também a contar com o meu pé de meia.
No princípio causa estranheza gastar suas economias pra financiar uma mudança dessas, mas ajustando as despesas, desapegando, enxergando o benefício, fui ficando convicto que é o melhor investimento possível. Vou trocar essa chance de crescimento como ser humano pelo que? Consumo? Por uma roupa nova? Por um automóvel novo? Pra que?

E chega de texto coach. Pelamor.
Então fica combinado que o Diário de Bordo é uma metáfora pra um Diário de Vida. Espero registrar aqui muitos episódios dessa volta ao mundo de veleiro, mas com uma lente humana, consequentemente cheia de agruras e descobertas, pra que quem ler se divirta e se sinta desafiado a sonhar diferente.
No próximo texto vou apresentar o Boto. Que barco é esse? Porque esse barco? Porque esse nome? Onde ele está? Como foi construído? Qual será o roteiro? Quando começa? Finalmente, um texto sobre veleiros e mares.
quem diria, adorei!
parabéns 😍